quinta-feira, 22 de abril de 2010

CORRESPONDÊNCIA....

Prezado Affonso (Romano de Sant'Ana)

Em tempos de agressividade generalizada, nada como uma boa dose de “Tempo de delicadeza”.
Segunda-feira passada (12-04-2010) entrei em uma classe do Ensino Fundamental, um 8º ano, com 14 alunos extremamente falantes, em uma escola com um currículo alternativo. Não trabalhamos da forma convencional, com gramática e exercícios, mas com muita leitura e discussão de textos. Enfim, estamos, desde o início do ano, lendo poesia, histórias de amor e textos de teatro, particularmente os de Shakespeare. Mas tem havido uma angústia dentro de mim, especialmente relacionada à falta de sensibilidade, ao menosprezo com os textos, o apego à leitura de romances de vampiros, etc. Isso tem me doído muito. E eu, amante da linguagem poética, continuo insistindo.
Nesse dia, em especial, falava sobre a linguagem poética, presente, não apenas nos poemas, mas também em textos em prosa. Levei para a sala de aula o livro Tempo de delicadeza, autografado no último Cole e que, por isso, nunca sai do meu escritório em casa.
Mostrei a dedicatória. Eles pouco se importaram. Pedi silêncio e comecei a ler a crônica título do livro. Para minha surpresa, um silêncio sepulcral se instalou na sala. Alguns foram abaixando a cabeça. Os mais falantes mudos, ouvindo atentamente. Era como se o falar deles, não o meu, naquela hora, apagasse algo que eles queriam registrar, ou melhor, incorporar. Eu não estava acreditando, pois minha luta para uma atenção tão pontual tem sido constante.
Ao ler o parágrafo final “Mas de novo vos digo: sejamos delicados. E, se necessário for, cruelmente delicados.” O silêncio permaneceu. O remédio havia dado certo: uma boa dose de linguagem poética.
Decidi, então, dar uma dose mais generosa para a minha pior classe, um 9º ano, com um determinado grupo de alunos que só consegue olhar para si mesmo e ouvir suas músicas, gravadas em ipods. A tônica ali tem sido a agressividade, o palavrão e o desrespeito. Dura tarefa: sensibilizá-los com “Tempo de delicadeza”. E não é que deu certo? Lemos, conversamos pouco a respeito. Deixei que as palavras da crônica, como na outra sala, fizesse o efeito desejado. E eles começaram a produzir textos sobre “tempo de....” Nesta semana recebo os textos e depois vamos expô-los na escola.
É, meu mais querido poeta, às vezes a poesia nos surpreende ainda mais do que imaginamos, mesmo em tempos de harrys potters e crepúsculos da vida.
Continue sempre poetando, pois ainda tenho muitos adolescentes para “amarrar” à leitura prazerosa.


Fernanda Torresan Marcelino

Fernanda, querida: uma carta como essa eu não a posso guardar egoisticamente só para mim. Tenho que alardeá-la, levá-la à praça pública, dependurá-la em todos os murais das escolas. Ainda hoje estive no escritório de Jason Prado, criador do LEIA BRASIL, folheando uns livros na sua estante, e vi os 3 volumes de crônicas de Cecília Meireles, organizados por Leodegário Azevedo, dedicados à educação e à leitura. Fernanda, você que se assina modestamente " Uma professorinha qualquer de Português", pertence à estirpe de Cecília, de Monteiro Lobato, de Mário de Andrade, de Paulo Freire, dessa geração do Cole e do Proler que nos últimos anos tem reinventado o espaço da leitura em nossa cultura.
Que felicidade imensa você me trouxe na véspera desse 21 de abril de tantos significativos em nossa memória.Assinado,
Um escritorzinho qualquer brasileiro

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